Vinte e oito famílias de vítimas do regime militar brasileiro receberam, nesta quarta-feira (3), certidões de óbito retificadas que registram a participação direta do Estado na morte de seus parentes. O ato ocorreu no auditório do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, em Brasília, e integra o processo oficial de reconhecimento das graves violações cometidas entre 1964 e 1985.
Reconhecimento formal da responsabilidade estatal
As novas certidões substituem documentos anteriores que omitiam a real causa dos óbitos. Agora, a forma de morte passa a ser descrita como “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política”. A entrega foi conduzida pela ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, e pela presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Eugênia Gonzaga.
Segundo a CEMDP, o Brasil contabiliza pelo menos 434 mortos ou desaparecidos em decorrência da repressão política. Desde 2023, foram distribuídas 63 certidões retificadas em Minas Gerais, 102 em São Paulo e, agora, mais 28 em Brasília. De acordo com Eugênia Gonzaga, a comissão planeia realizar outras duas cerimónias de entrega em 2026.
Casos emblemáticos apresentados na cerimónia
Entre os documentos atualizados está o de Nativo da Natividade de Oliveira, trabalhador rural assassinado em 1985, em Carmo do Rio Verde (GO). A investigação da Comissão Nacional da Verdade aponta que o crime foi executado por um pistoleiro a mando do então prefeito Roberto Pascoal Liégio. Viúva de Oliveira, a ex-lavradora Maria de Fátima Marinelli, recebeu o novo registro das mãos da ministra. “Só nós sabemos o que passamos”, afirmou a agricultora, emocionada ao lembrar as dificuldades enfrentadas para sustentar os filhos depois da morte do marido.
Outro caso lembrado foi o de Demerval da Silva Pereira, militante morto em janeiro de 1974, na região do Araguaia. A sobrinha, a advogada Andréia Pereira, relatou o impacto prolongado da ausência do tio: depressão do pai, adoecimento da avó e a busca familiar por informações que ficaram ocultas durante décadas.
A cerimónia também incluiu a retificação do óbito de Jorge Aprígio de Paula, operário e estudante de medicina baleado pelas costas em 1.º de abril de 1968, no centro do Rio de Janeiro, durante protesto contra o assassinato do secundarista Edson Luiz. Sua irmã, a enfermeira Sueli Damasceno, recordou o clima de medo que se instaurou após a morte e a mudança forçada de endereço provocada pela vigilância de agentes estatais.
Reparação, memória e acesso a documentos
Ao entregar os novos registros, a ministra Macaé Evaristo declarou que o direito à memória, à verdade e à justiça “não deve ser pauta apenas de governo, mas da sociedade brasileira”. Ela destacou a importância de tornar públicos mais arquivos relativos à ditadura para assegurar transparência histórica.
Imagem: Últimas Notícias
A presidente da CEMDP considerou o ato um passo adicional no percurso iniciado em 1995, quando a Lei 9.140 reconheceu como mortas as pessoas desaparecidas no regime militar e estabeleceu mecanismos de reparação. Desde então, diversos processos judiciais e administrativos têm buscado corrigir registros civis, conceder indenizações e identificar restos mortais.
Perspetiva das famílias e próximos passos
Familiares presentes reforçaram a necessidade de continuidade das investigações e da localização de corpos que ainda permanecem sem destino conhecido. Para eles, a correção das certidões representa não apenas um ato simbólico, mas também a possibilidade de acessar direitos, como pensões e indenizações, além de estabelecer definitivamente a verdade nos registros oficiais.
A Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos informou que mantém frentes de trabalho para concluir perícias, ouvir testemunhas e analisar documentos militares. O objetivo é encerrar o maior número possível de processos até o fim de 2026, prazo que pode ser prorrogado se houver consenso no Congresso Nacional.
Contexto histórico e impacto social
A ditadura militar vigorou no Brasil de 1964 a 1985, período marcado por censura, perseguições e tortura de opositores. Desde a redemocratização, o Estado reconheceu responsabilidades, implementou políticas de reparação e instalou a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014), que investigou violações de direitos humanos. As certidões entregues nesta semana consolidam no âmbito cartorial o que relatórios oficiais já apontavam, encerrando uma lacuna documental que persistia há décadas.
Para especialistas em Direito à Verdade, a retificação dos registros civis contribui para reforçar a confiança nas instituições democráticas e preservar a memória coletiva, evitando a repetição de práticas autoritárias. Ao mesmo tempo, as famílias ganham respaldo legal que valida sua luta por reconhecimento e justiça.





