A rede pública de ensino de São Paulo vem ampliando o uso de materiais lúdicos, como quadrinhos e debates em sala, para cumprir a lei que tornou obrigatório, em 2003, o ensino de história e cultura afro-brasileira da educação infantil ao ensino médio. Duas décadas depois, a aplicação do conteúdo ainda encontra resistência ligada a questões religiosas, mas programas de formação e novos acervos têm impulsionado a abordagem antirracista.
Material didático e formação de professores
Na capital paulista, a Secretaria Municipal de Educação distribuiu 700 mil livros sobre temática étnico-racial em 2022, abrangendo obras infantis, juvenis e adultas. Cada escola recebe orientação do Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NEER), responsável por integrar o acervo ao Currículo da Cidade e apoiar projetos de valorização das culturas afro-brasileiras, indígenas e migrantes.
No âmbito estadual, o Programa Multiplica Educação Antirracista capacita professores desde 2024. Conduzido pela Coordenadoria de Educação Inclusiva (COEIN) em parceria com a Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais da Educação (EFAPE), o programa já alcançou 6,8 mil docentes com módulos sobre cultura e religiosidade africanas. A Secretaria Estadual de Educação (Seduc-SP) afirma que o objetivo é incorporar o conteúdo à rotina escolar como parte essencial da formação histórica e cultural dos estudantes.
Orixás fora do contexto religioso
Professora de geografia há mais de 20 anos, Núbia Esteves leciona nos ensinos fundamental e médio na EMEF Solano Trindade, no Jardim Boa Vista, zona oeste da capital. Premiada pela preservação da memória da escola e do bairro, ela utiliza orixás como recurso pedagógico, mas frisa que o foco é cultural, não religioso:
“Eu ensino cultura. Trabalho os orixás por meio da mitologia comparada, mostrando arquétipos e símbolos que também aparecem em outras tradições, como Atena na Grécia ou Zeus na mitologia grega.”
Nas atividades, alunos comparam a proteção do mar por Iemanjá à deusa grega Tétis ou exploram a ligação entre Oxum e Afrodite. A docente relaciona esses mitos aos cuidados ambientais representados pelos orixás que guardam mares, matas e rios.
Quadrinhos, cordéis e audiovisual
Núbia recorre a obras de autores como Pierre Verger e Reginaldo Prandi e propõe quadrinhos, cordéis e vídeos para aproximar os estudantes do conteúdo. Um exemplo citado pela professora é o quadrinho criado por um aluno em que um orixá conversa com um deus grego, recurso que estimula reflexão sobre similaridades culturais de povos distintos. As aulas também incluem rodas de conversa sobre ética, convivência e valores individuais.
A estratégia se ampara em documentos oficiais, como o guia Orientações Pedagógicas: Povos Afro-brasileiros, que sugere práticas de ensino antirracista. Segundo a Secretaria Municipal, tais materiais oferecem subsídios para que o tema apareça em diferentes disciplinas, não apenas em história.
Imagem: Educação
Resistência e incidentes
Apesar dos avanços, tensões persistem. No mês da Consciência Negra, uma escola da rede pública paulista recebeu policiais chamados pelo pai de uma aluna que desenhou um orixá em atividade escolar. O episódio foi criticado por pais, comunidade e autoridades, evidenciando a confusão entre abordagem cultural e prática religiosa.
Núbia relata questionamentos semelhantes em sala de aula. Quando os estudantes confundem o conteúdo com catequese, ela esclarece que a escola também estuda mitologia grega ou festas populares católicas sem caráter religioso. Para a professora, reconhecer símbolos africanos integra o patrimônio histórico do Brasil e combate o racismo estrutural.
Por que o ensino afro-brasileiro é lei
A obrigatoriedade do conteúdo decorre das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que incluíram a história afro-brasileira e indígena nos currículos. O objetivo é promover reconhecimento da contribuição desses povos à formação social, cultural e econômica do país, além de enfrentar a discriminação racial. A legislação exige que estados e municípios ajustem programas formativos, materiais didáticos e avaliação escolar.
Desafios e perspectivas
Especialistas apontam que a falta de diálogo entre família, escola e comunidade religiosa tende a gerar conflitos, como o registrando na unidade que recebeu policiais. A Seduc-SP defende que a formação continuada e a divulgação de práticas de sucesso ajudam a reduzir mal-entendidos e consolidar o ensino antirracista.
Enquanto políticas públicas avançam, experiências como a da EMEF Solano Trindade indicam que o uso de linguagens acessíveis — quadrinhos, cordéis e debates — amplia o interesse dos estudantes e fortalece a compreensão da diversidade cultural brasileira.





