Rio de Janeiro — A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) instituiu grupos de trabalho para monitorar a trajetória profissional e acadêmica de estudantes que ingressaram pela política de cotas. A medida foi destacada pelo sociólogo Luiz Augusto Campos, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-Uerj) e referência no tema, como passo indispensável para avaliar a efetividade das ações afirmativas duas décadas após a sua adoção.
Monitoramento busca medir efeitos além da graduação
Segundo Campos, a Lei de Cotas deve ser encarada como instrumento para reduzir desigualdades estruturais no mercado de trabalho, e não como objetivo final. O docente argumenta que o sucesso da política depende de resultados observados fora da universidade, o que exige acompanhar ex-alunos nas etapas seguintes de formação e emprego. “A ponta mais importante da análise é saber o que acontece depois do diploma”, afirmou.
A Uerj foi pioneira ao implementar cotas raciais e sociais em 2003. Agora, com a criação dos grupos de acompanhamento, a instituição pretende recolher dados sobre empregabilidade, renda, continuidade nos estudos e outras variáveis que permitam mensurar o impacto do sistema de reserva de vagas.
Desafios na pós-graduação e critério socioeconômico
Embora a universidade tenha ampliado o acesso de pretos, pardos e estudantes de baixa renda à graduação, persistem barreiras na pós-graduação. A Lei estadual 8.121/2018 estabeleceu que candidatos às vagas reservadas precisam comprovar renda familiar bruta de até R$ 2.277 por pessoa. Pesquisadores e egressos defendem a revisão do limite, considerado baixo para quem busca mestrado ou doutorado.
Campos observa que muitos graduados cotistas deixam de se enquadrar no critério de renda assim que recebem bolsas de pesquisa. Para ele, esse obstáculo reduz a efetividade das cotas na formação de novos mestres e doutores negros e de baixa renda. O professor sugere que a universidade aprove a autonomia dos programas de pós-graduação para atenuar o corte ou adote outras formas de aferir vulnerabilidade socioeconômica, enquanto a legislação não é revista.
Números evidenciam sub-representação na ciência
Dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) indicam que pretos representaram 4,1% dos títulos de mestrado e 3,4% dos de doutorado no país entre 1996 e 2021. Pardos somaram 16,7% e 14,9%, respectivamente, enquanto indígenas ficaram abaixo de 0,3% em ambos os níveis. No mesmo período, 49,5% dos mestres e 57,8% dos doutores foram brancos.
Os números reforçam a avaliação de que políticas de ampliação no ensino superior ainda não se traduzem, na mesma proporção, em avanços na pesquisa e na produção científica. Sem ajustes, o corte socioeconômico pode excluir parcela significativa dos potenciais candidatos negros e de baixa renda, mesmo com a reserva de vagas.
Revisão da lei dependerá de nova avaliação em 2028
A legislação que rege as ações afirmativas da Uerj prevê reexame apenas em 2028. Até lá, mudanças substantivas dependerão de iniciativas internas ou de novas propostas no parlamento estadual. Campos alerta para riscos de judicialização caso programas de pós-graduação imponham exigências adicionais não previstas em lei, mas entende que interpretações mais flexíveis sobre renda podem ser debatidas nos colegiados das próprias faculdades.
Imagem: Educação
Durante encontro realizado em novembro, mês dedicado à Consciência Negra, egressos cotistas relataram dificuldade para conciliar trabalho e estudo, sobretudo devido à ausência de políticas de permanência na pós-graduação. Eles defendem distribuição de bolsas e serviços de apoio que contemplem moradia, alimentação e saúde mental.
Próximos passos para avaliar e aperfeiçoar as cotas
O livro “Impacto das Cotas: Duas Décadas de Ação Afirmativa no Ensino Superior Brasileiro”, organizado por Luiz Augusto Campos, apresenta diagnóstico detalhado dos êxitos e lacunas da política. Entre as recomendações, o autor destaca:
• Estruturar sistemas de acompanhamento longitudinal de egressos, permitindo comparar trajetórias de cotistas e não cotistas;
• Aperfeiçoar critérios socioeconômicos para evitar exclusões involuntárias;
• Reforçar políticas de permanência, especialmente na pós-graduação;
• Estimular pesquisas que relacionem ação afirmativa e mercado de trabalho.
Para o sociólogo, o debate deve considerar que a Lei de Cotas é “política meio”, concebida para reduzir desigualdades raciais e sociais. “Se não produce efeitos no emprego e na renda, fracassa enquanto política pública”, resume.
Os grupos recém-criados na Uerj devem iniciar coleta de dados no primeiro semestre de 2026. A partir dos resultados, a universidade planeia ajustar editais de seleção e propor revisões ao poder legislativo. O objetivo é garantir que a reserva de vagas continue a cumprir o propósito de ampliar oportunidades educacionais e profissionais para populações historicamente excluídas.






